Equilíbrio é desafio para instituir previdência em trabalho por plataforma

Terça, 12 de dezembro de 2023

Os trabalhadores de aplicativo de serviços no setor de transportes, como motoristas e entregadores, não acessam, atualmente, a Previdência Social. Sua inclusão requer um sistema que siga alguns princípios básicos, para ser sustentável sob o ponto de vista fiscal e adequado tanto para a geração de emprego por parte das plataformas quanto em relação aos direitos socioeconômicos dos trabalhadores. É o que apontam os pesquisadores Fernando de Holanda Barbosa Filho, Fernando Veloso e Paulo Peruchetti, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).

Enquanto 64,7% da população ocupada total contribui para a Previdência, essa proporção cai para 22,6% entre motoristas de aplicativo e 25,4% entre os entregadores, destacam os pesquisadores a partir de uma pesquisa especial da Pnad Contínua do IBGE, com dados de dezembro de 2022.

“Deveria ter mais proteção do que tem. Hoje, é insuficiente, eles não têm Previdência, não têm proteção contra acidente. A gente pode fazer melhor, mas tem que ser a um custo sustentável”, diz Veloso.

Os pesquisadores ressaltam que, embora o número de trabalhadores de plataformas, comparado à população ocupada (14 anos ou mais), ainda possa não parecer impressionante (1,7%), ele está longe de ser insignificante, e o impulso tecnológico da economia vai aumentar essas proporções.

“O problema de condições difíceis de trabalho acopladas à cobertura previdenciária muito baixa, portanto, tende a se agravar”, escreve Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, na Carta de dezembro da instituição, antecipada ao Valor.

Problema de condições difíceis e cobertura baixa tende a se agravar” — Luiz Guilherme Schymura

No caso do setor de transportes, especificamente, trabalhadores que realizam trabalho por plataformas digitais de serviços já representam mais de 19% da população ocupada total no segmento.

No fim do ano passado, havia 1 milhão de pessoas que trabalhavam, na ocupação principal, por meio de aplicativos no setor de transportes. Entre eles, 206,7 mil trabalhavam com aplicativos de táxi, 703,8 mil com aplicativos de outro tipo de transporte particular e 588,6 mil com aplicativos de entrega de comida e produtos - na pesquisa do IBGE, um mesmo trabalhador pode acusar o uso de mais de um tipo de aplicativo.

Os pesquisadores notam que as duas primeiras classificações (aplicativos de táxi e de outro transporte particular) só incluem trabalhadores de transporte, mas a entrega de comida e produtos abrange também outras categorias. Por exemplo: 247,6 mil trabalhadores nesse tipo de aplicativo alegam atuar no setor de alojamento e alimentação e 88,8 mil são do setor do comércio. Provavelmente, eles explicam, são pessoas que trabalham em empresas que atendem pedidos por aplicativo, encarregados não da entrega, mas de comercializar ou preparar os produtos.

“Há evidências de que os trabalhadores de transporte em aplicativo contribuem para a Previdência particularmente pouco mesmo quando comparados a trabalhadores de plataformas digitais fora da área de transporte”, destaca Schymura na carta. Entre trabalhadores ligados a aplicativos de entrega de comida e produtos no comércio, essa taxa de contribuição é de 70%; em alojamento e alimentação, é de 54,5%.

Barbosa Filho ressalta que a contribuição à Previdência não é facultativa, mas obrigatória por lei para todos os trabalhadores que exercem atividade remunerada, com ou sem vínculo empregatício. “Ou seja, a legislação corrente demanda a contribuição do trabalhador de aplicativo como de qualquer outro ocupado”, explica a Carta.

Em 2019, por exemplo, um decreto do governo federal estabeleceu que motoristas de plataformas também podem se cadastrar como microempreendedor individual (MEI). Mesmo essa opção barata de contribuição - apenas 5% do salário mínimo -, porém, não foi capaz de atrair os trabalhadores de transporte “plataformizados”, notam os pesquisadores. “Apesar de ter uma gama de escolhas, o fato é que ele não contribui, talvez não veja valor”, diz Barbosa Filho.

Não à toa, há 126 projetos legislativos no Congresso relativos à proteção social e trabalhista dos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil, dizem os pesquisadores, citando o trabalho de colegas da FGV Direito São Paulo. E o atual governo também chegou a formar um grupo de trabalho envolvendo as plataformas e trabalhadores na tentativa de encontrar terreno comum para promover mudanças, inclusive previdenciárias, lembram os pesquisadores.

A contribuição mínima do MEI dá direito a um benefício previdenciário de um salário mínimo, o que pode parecer pouco atraente para os trabalhadores por aplicativo em transporte, em particular para os motoristas, que têm renda superior a um mínimo, observam os economistas do FGV Ibre. Por isso, dizem, um sistema previdenciário pensado para eles deveria focar a oferta de benefícios superiores ao salário mínimo.

Para os pesquisadores, qualquer mudança previdenciária voltada aos trabalhadores por aplicativo deveria incluir também benefícios de risco, como auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez. “É pela natureza da atividade. Se o trabalhador tem um acidente, fica doente, não pode trabalhar, não ganha nada”, diz Veloso.

Além disso, uma alíquota de contribuinte individual de 20% deveria ser vista como um piso, segundo os pesquisadores, porque mesmo ela já embutiria subsídios governamentais. “Se quiser ser atuarialmente sustentado, vai ter de ser até mais elevada”, observa Barbosa Filho. “Não faz sentido criar um sistema adicional com alíquota com subsídio alto.”

O ideal, dizem, é que houvesse contribuições tanto do trabalhador quanto das plataformas, e que fossem deduzidas, ambas, de forma automática, pelas próprias empresas. “Coloca a plataforma para, de certa forma, dividir esse custo, tornar o sistema mais sustentável”, diz Barbosa Filhos. Além disso, deduções automáticas por parte das empresas tenderiam a levar a um grau mais elevado de contribuição entre os trabalhadores, segundo os pesquisadores.

Isso não pode, no entanto, correr o risco de ser enquadrado como vínculo empregatício, sob o risco de inibir a atuação de companhias que têm sido importantes para a economia, alerta Barbosa Filho. “Precisa de um novo sistema, uma legislação nova para contemplar novas formas de trabalho.”

Outra boa ideia, segundo os pesquisadores, seria separar a remuneração bruta do valor líquido recebido pelo trabalhador de transporte com aplicativos, para fins de contribuição. Isso porque há custos como de aquisição e manutenção de veículos e combustível que têm de ser deduzidos da receita bruta para chegar ao rendimento efetivo. O ideal, sugerem, seria arbitrar um percentual da receita considerada como líquida para a categoria, já que não seria prático fazer o cálculo caso a caso.

Os trabalhadores “plataformizados” de transportes são, como mostra o IBGE, esmagadoramente, homens: 93,4%, ante 57,1% na população ocupada total do Brasil.

Sua idade média é de 38,6 anos, mas os entregadores de comida e produtos têm uma idade média bem inferior, de 32,8 anos. Entre eles, 46,4% têm até, no máximo, 29 anos, comparado a 27,2% na população ocupada total e apenas 20,9% entre os motoristas de aplicativo.

“Tem uma barreira que é a idade mínima para tirar carteira. Além disso, muitas vezes, para alugar um veículo, é preciso ter mais anos de carteira”, afirma Barbosa Filho.

A análise do perfil socioeconômico e demográfico dos trabalhadores de transporte por aplicativo evidencia, segundo os pesquisadores, que se trata de um contingente que enfrenta dificuldades.

Os motoristas têm maior escolaridade média, mas menor rendimento médio, comparados à população ocupada. Já os entregadores têm escolaridade equivalente, e até ligeiramente maior, mas rendimentos bem menores do que os da população ocupada total.

Em termos médios, a renda da população ocupada é de R$ 2.727 mensais, maior que a dos motoristas de aplicativo (R$ 2.367) e bem maior que a dos entregadores (R$ 2.011). “Junta o tipo de ocupação da entrega com aquela relativa pouca experiência dos mais jovens e acho que ajuda a explicar esse movimento de salários mais baixos nesse grupo”, diz Barbosa Filho.

Publicado em Valor