Potenciais controvérsias securitárias decorrentes da COVID-19

Quinta, 9 de abril de 2020

Potenciais controvérsias securitárias decorrentes da COVID-19

Nos EUA, já ganham corpo as disputas envolvendo o pagamento de coberturas securitárias para empresas obrigadas a suspender suas atividades em decorrência do novo coronavírus. Um grupo de 18 parlamentares americanos, envolvendo membros dos partidos Democrata e Republicano, enviou uma carta aos líderes da American Property Casualty Insurance Association - APCIA, da National Association of Mutual Insurance Companies - NAMIC, da Independent Insurance Agents & Brokers of America – IIABA e do Council of Insurance Agents and Brokers - CIAB, pedindo que sejam garantidas as coberturas securitárias relativas às interrupções de atividades comerciais (lucros cessantes) em decorrência da pandemia1.

Em resposta ao apelo, os líderes das associações de seguradores, apesar de reconhecerem a gravidade da situação, externando o compromisso de trabalhar ativamente para que as indenizações sejam prontamente pagas quando devidas, afirmaram expressamente que as apólices para interrupção de atividades (lucros cessantes) não oferecem e nem foram concebidas para oferecer cobertura contra doenças contagiosas como a COVID-192.

Segundo tais seguradores, as apólices de business interruption normalmente são desenhadas para oferecer cobertura para interrupção de negócios em razão de danos físicos a bens segurados, normalmente decorrentes de fogo, inundação ou desastres naturais, embora haja a possibilidade de contratação de coberturas adicionais para casos de interrupção de atividades comerciais e industriais por ordem de autoridade pública e até mesmo, especificamente, para contaminação por vírus e bactérias.

Na oportunidade, as associações de seguradores aproveitaram para contestar as bases de uma proposta legislativa do Estado de Nova Jersey que visa, em suma, obrigar as seguradoras a pagarem retroativamente indenização a todo segurado de apólice de business interruption (lucros cessantes), que já estivesse vigente em 09.03.20, e cuja folha de pagamento conte com menos de 100 empregados, independentemente de haver expressa exclusão de risco decorrente de contaminação por vírus (N.J. Assembly Bill 3844)3. De fato, uma medida que feriria o ato jurídico perfeito.

Outros casos, entretanto, revelam que os fundamentos dos seguradores para recusar a garantia podem não ser tão certos quanto lhes parece. Um restaurante situado na zona turística de Nova Orleans, Louisiana propôs uma ação declaratória com a pretensão de que, no âmbito de uma apólice all risks (garantia para todos os riscos, exceto os expressamente excluídos), o segurador seja obrigado a pagar a cobertura para business interruption caso haja uma ordem da autoridade local obrigando a suspensão das atividades do restaurante4. Em seu pleito, o restaurante sustenta que a possível contaminação do local pelo novo coronavírus deve ser equiparada a um dano físico causado ao imóvel, inutilizando-o, para fins de reconhecimento da existência de cobertura securitária.

Uma ação semelhante, também com base em uma apólice com cobertura para business interruption, foi ajuizada contra uma seguradora por dois restaurantes situados no Condado de Napa, na California, em razão de uma ordem da autoridade de saúde local que determinou que, em razão do novo coronavírus, os restaurantes teriam que suspender suas atividades e só poderiam manter os seus serviços de entrega5.

De igual modo, uma tribo de Nativos Americanos em Oklahoma ajuizou uma demanda contra seguradoras, também no âmbito de uma apólice all risks e cobertura contra riscos de business interruption, para obrigá-las a pagarem indenização securitária relativa ao fechamento de seus cassinos durante a pandemia. Assim como nas ações ajuizadas pelos restaurantes, a tribo alega que o contágio viral equivale a um dano físico ao imóvel, na medida em que torna impossível a sua utilização pelo proprietário para a finalidade econômica pretendida.

Um outro caso decorrente do surto do novo coronavírus envolve os Jogos Olímpicos de Tóquio, agendados para iniciar no dia 24 de julho, mas que foram adiados para o ano seguinte. A Swiss Re, detentora de 15% do mercado global de apólices de seguro para eventos e emissora da apólice de seguro de eventos para os Jogos Olímpicos de Tóquio, havia afirmado que corria o risco de ser obrigada a pagar indenizações no montante de cerca de USD 250 milhões, caso os Jogos Olímpicos fossem cancelados ou adiados.

Já no Brasil, a discussão acerca dos efeitos da pandemia no âmbito securitário ainda não alcançou maior concretude, sendo certo, entretanto, que relevantes disputas entre segurados e seguradores se avizinham.

Conquanto o costume de se contratar apólices com cobertura para lucros cessantes decorrentes de interrupção de atividades comerciais e industriais não seja tão difundida no Brasil quanto nos EUA, os segurados que possuem apólices com tal garantia costumam contratar limites máximos de indenização altos, para fazer frente aos riscos de suas atividades. Outras coberturas certamente também serão discutidas, como cancelamento de eventos, interrupção e atraso de obras civis, garantia de pagamentos e performance de contratos, transporte de cargas, cancelamento de viagens, etc.

Entretanto, diferentemente das apólices americanas de business interruption, as apólices com cobertura para lucros cessantes no Brasil possuem escopo de cobertura definido pelo art. 2º do Anexo à Circular SUSEP nº 560/17, segundo o qual “O objetivo do seguro de Lucros Cessantes é garantir uma indenização pelos prejuízos resultantes da interrupção ou perturbação no movimento de negócios do segurado, causada pela ocorrência de eventos discriminados na apólice”. 

Contudo, o fato é que tais coberturas securitárias para lucros cessantes decorrentes de interrupção de atividades comerciais e industriais costumam ser oferecidas pelos seguradores como uma cobertura acessória aos seguros patrimoniais, o que leva a crer que os seguradores deverão argumentar, tal como nos EUA, que a cobertura dependeria da ocorrência de perda ou deterioração de bens tangíveis do segurado.

O enquadramento jurídico e correta conceituação de tal requisito deverá, necessariamente, ser debatido entre as partes contratantes, caso a caso, especialmente diante da efetiva possibilidade de se entender que, de fato, a contaminação viral do local segurado deve ser equiparada a um dano físico à propriedade segurada, inutilizando-a ainda que temporariamente, o que acarretaria a necessidade de reconhecimento da cobertura de lucros cessantes por interrupção ou perturbação no movimento de negócios do segurado.

Mas, quanto a isso, o fato é que muitas apólices de seguro, dos mais variados tipos, incluindo pessoas e danos, preveem expressamente a exclusão de cobertura em casos de eventos decorrentes ou relativos a epidemias e pandemias, consoante declaradas pelo órgão competente. Tais hipóteses de exclusão tornaram-se ainda mais numerosas desde o surto da síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003, que levou na época algumas seguradoras a pagarem vultuosas indenizações securitárias.

Noutro segmento bastante impactado, à semelhança do que ocorre no restante do mundo, também no Brasil incontáveis eventos de todos os portes estão sendo cancelados, adiados ou interrompidos por tempo indefinido, para impedir o contágio do novo coronavírus na população.

Ocorre que os organizadores de muitos desses eventos provavelmente já incorreram em custos para a sua realização, contratando funcionários, serviços e produtos de terceiros, investindo em publicidade, alugando imóveis, dentre outras despesas. Além disso, em relação a muitos desses eventos, ingressos já foram provavelmente vendidos, gerando potenciais conflitos também entre os produtores e consumidores que, com razão, pretendem reaver os valores pagos pelos ingressos.

Dessa forma, a apólice de seguro de eventos, embora ainda pouco difundida no Brasil, é um importante instrumento para mitigar os riscos de cancelamento, adiamento ou interrupção de eventos, tanto no que diz respeito às coberturas para prejuízos diretos sofridos pelos organizadores do evento, segurados da apólice, quanto às coberturas para reclamações ajuizadas contra os segurados por consumidores e terceiros contratados. 

Importante destacar que as apólices de seguro de eventos costumam garantir o risco apenas em caso de determinação por autoridades competentes para o cancelamento, adiamento ou interrupção do evento. Isto é, caso o próprio segurado se antecipe à ordem de autoridade, decidindo, como medida de prevenção, cancelar ou adiar o evento, é provável que, pelos termos da apólice, não haja cobertura securitária. 

De outro lado, empresas do setor de infraestrutura, envolvendo especialmente grandes contratos de concessão e de Parcerias Público-Privadas (PPPs), já avaliam os próximos passos a tomar diante da crise, com o crescente risco de inadimplência e a consequente necessidade de pleitear o pagamento de cobertura securitária, notadamente no âmbito de apólices de seguro-garantia.

Neste sentido, tornam-se ainda mais urgentes medidas como a aprovação do projeto da nova Lei de Licitações (PL nº 1.292/95), que torna obrigatória a contratação de seguro-garantia para grandes obras, envolvendo valor superior a R$ 200 milhões. Nestes casos, segundo o projeto de lei, o seguro-garantia poderá ser de até 30% do valor da obra e prever que, em caso de inadimplência do segurado, a seguradora poderá assumir a execução e conclusão do contrato.

Para os seguros de pessoas, a questão envolve ainda outros contornos, por em regra se tratar de relações contratuais amparadas pela legislação consumerista, que oferece instrumentos de interpretação e integração que tendem a favorecer o segurado consumidor, mesmo contra expressa disposição contratual – como é o caso das cláusulas tidas como abusivas, por submeterem o consumidor a situação de desvantagem excessiva (art. 51, IV, CDC). Nessas situações, normalmente exige-se prova de que o segurador prestou ao segurado de maneira clara e exata todas informações acerca de eventuais exclusões de cobertura.

No que diz respeito especificamente aos seguros de viagem, que em sua maioria costumam conter exclusão expressa de riscos decorrentes de pandemia e epidemia, interessante notar que a Allianz, uma das maiores seguradoras do ramo, emitiu comunicado no último dia 16 de março, afirmando expressamente que o contágio relativo à COVID-19 se tornou evento notório no dia 22 de janeiro de 2020, e que as reclamações decorrentes de eventos notórios, previsíveis e esperados, como epidemias e restrições governamentais não são passíveis de cobertura securitária. Não obstante, em razão do momento delicado, a seguradora se comprometeu, num ato de aparente liberalidade (ou antecipação dos custos que teria com ações judiciais e repercussões negativas a sua imagem), a pagar cobertura securitária para casos de (i) atendimento médico emergencial necessário em razão da contaminação por COVID-19 durante a viagem e (ii) cancelamento de viagem em razão contaminação por COVID-19 durante ou antes da viagem6.

De toda sorte, nas hipóteses em que as apólices forem silentes acerca da expressa exclusão de cobertura para sinistros causados por pandemias, epidemias ou contágio de vírus em geral, encontraremos terreno ainda mais fértil para discussão entre segurados e seguradores, que serão distintas, evidentemente, caso a apólice seja de riscos nomeados ou abranja todos os riscos exceto os expressamente excluídos (all risks).

A exceção diz respeito aos planos de seguro privados, que contam com cerca de 50 milhões de segurados no país. Isso porque a ANS, após apelo do Ministério da Saúde, incluiu, no último de 12 de março, por meio da Resolução nº 453, o exame de detecção do novo coronavírus no rol de procedimentos obrigatórios para beneficiários do plano de saúde, nas hipóteses em que houver expressa indicação médica7.

Ademais, ao noticiar a aprovação da referida resolução, a ANS esclareceu ainda que o tratamento para a COVID-19 já é garantido aos beneficiários de planos de saúde. Como forma de evitar que as operadoras de planos de saúde fiquem sobrecarregadas diante dessas circunstâncias, a ANS deverá liberar ao setor R$ 10 bilhões, provenientes do fundo garantidor constituído com recursos das próprias operadoras, embora as condições para tanto ainda não estejam definidas por tal agência reguladora. No mais, um relatório elaborado pelo Credit Suisse concluiu que o impacto da COVID-19 sobre as receitas das operadoras e seguradoras de saúde deve variar apenas entre 1% a 2,6% de suas receitas, considerando a carteira de usuários e os riscos de internação causados pela doença.

Em paralelo, o aumento de sinistralidade das apólices de seguro de saúde e dos planos de saúde provavelmente dará azo a um reajuste justificado de contratos de saúde coletivos, sendo esta uma possibilidade assegurada pela jurisprudência pátria, “sempre que a mensalidade do seguro ficar cara ou se tornar inviável para os padrões da empresa contratante, seja por variação de custos ou por aumento de sinistralidade"8.

Diante dessas circunstâncias, faz-se necessário, talvez mais do que nunca, a aprovação da nova lei de seguros, já aprovada pela Câmara dos Deputados e atualmente em trâmite no Senado Federal (Projeto de Lei da Câmara nº 29/2017), que consolida as normas que regulam o setor, garantindo maior estabilidade e sistematicidade no tratamento do tema.

Enfim, as disputas securitárias decorrentes dos prejuízos causados pela pandemia deverão ser avaliados de forma individualizada, considerando os termos da lei, das apólices contratadas, das normas da SUSEP para cada modalidade de seguro e, principalmente, à luz dos princípios da boa-fé, cooperação e solidariedade, incidentes sobre todo e qualquer contrato. Mais do que nunca, as mediações deverão ter papel fundamental na resolução dos casos, com destaque, ainda, ao papel dos profissionais reguladores de sinistros, a quem caberá exercer a função educativa e conciliatória, de forma isenta e independente, sempre com o escopo de permitir aos seguradores prestarem o dever de garantia contratual.

É imprescindível, assim, que segurados e seguradores passem a atuar de forma colaborativa desde já, com ampla comunicação de eventos e das perdas sofridas pela pandemia ou suas consequências, possibilitando que os sinistros sejam regulados, liquidados e indenizados, quando o caso, o mais rápido possível, com a finalidade comum de manutenção dos contratos e preservação das empresas.

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2 “Business interruption policies do not, and were not designed to, provide coverage against communicable diseases such as COVID-19”.

8 AgRg nos EDcl no AREsp 235.553/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/06/2015, DJe de 10/06/2015.

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Fonte: Migalhas

Escrito por: Pedro Ivo Mello é sócio do escritório Raphael Miranda Advogados

                 Paulo Nonato é advogado do escritório Raphael Miranda Advogados

Palavras-chave: covid-19, direito do seguro, seguro, pandemia, coronavirus